Vidroplano
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Entenda como o vidro ajudou a evolução humana

27/06/2022 - 11h43

A presença do vidro em nossa rotina é tão grande que mal nos damos conta de como ele está diretamente ligado à nossa vida: pode ser encontrado nas televisões e em computadores, usados tanto para diversão como para trabalho; nos carros e automóveis que nos transportam; em utensílios empregados para preparar nosso alimento (fogões, panelas, micro-ondas)… A lista vai longe.

No entanto, houve um momento na história humana em que o material era quase um desconhecido – e foi exatamente o aumento de sua presença no dia a dia que fez a humanidade chegar ao nível de tecnologia e conhecimento vistos atualmente. Quem afirma isso são dois especialistas no assunto: Alan MacFarlane, professor de Ciências Antropológicas na Universidade de Cambridge (Inglaterra) e Gerry Martin, historiador e empresário.

Um livro lançado por eles há 20 anos alterou a forma como se enxergava nossa relação com o vidro. Segundo seus estudos, publicados em 2002 na obra The Glass Bathyscape: How Glass Changed The World (“O batiscafo de vidro: como o vidro mudou o mundo”, ainda sem tradução para o português), a evolução em vários campos do saber, atingida nos séculos 13 a 19, só foi possível graças ao material.

E já que o aniversário de duas décadas do livro caiu em pleno Ano Internacional do Vidro, O Vidroplano explica com detalhe essa teoria.

Breve passeio pela história do vidro
Como mostrado na seção “Ano Internacional do Vidro” de O Vidroplano em janeiro, o vidro não foi inventado. Provavelmente o material foi descoberto sem querer por fenícios há cerca de 4 mil anos, na região da Mesopotâmia (que hoje compreende parte do Iraque e Síria), ao cozinhar usando blocos de sódio e panelas em cima da areia de uma praia.

A trajetória transparente seguiu: após 500 anos, os egípcios desenvolveram um método para a produção de recipientes envidraçados — e o primeiro “manual” de como fazer vidro, escrito em pedras pelos assírios, levou mais mil anos para surgir.

Algum tempo depois (cerca de 2 mil anos atrás), os sírios inventam a técnica de sopro para a fabricação de vasos, o que seria adotado pelos romanos e levado para a Europa. Isso permitiu que a cidade italiana de Veneza se tornasse o centro da produção de vidro no Ocidente por volta do século 13.

De lá pra cá, a produção em massa do vidro só aumentou — e na seção “Ano Internacional do Vidro” deste mês, na página 66, você confere a última revolução no processo: a criação do processo de flutuação para a fabricação do vidro float.

Foto: SvetlanaSF/stock.adobe.com

Foto: SvetlanaSF/stock.adobe.com

 

Salto para o conhecimento
Nesse período de 600 anos, a humanidade saiu da Idade Média para passar por diversas revoluções: o Renascimento mudou a arte e a ciência, a Revolução Francesa mudou a política e a Revolução Industrial mudou o trabalho. Todas essas rupturas com a sociedade de antes têm uma coisa em comum: aconteceram na Europa Ocidental. Por que esse lugar especifico foi o berço de tantas revoluções? As grandes civilizações islâmicas e chinesas daqueles tempos não poderiam ter liderado essas mudanças pelas quais o mundo passou?

Para MacFarlane e Martin, a resposta está no tipo de uso de nosso material. Por toda a Europa Oriental e Ásia, o vidro era feito para ser aplicado em joias, contas e brinquedos, como uma espécie de substituto das pedras preciosas. Recipientes, vasos e potes envidraçados eram especialidades dos italianos, especialmente da cidade de Veneza. Por isso, pouco se via desses objetos em locais como Índia, China e Japão. Na Rússia e nos territórios islâmicos, a aplicação do vidro caiu drasticamente por volta do século 14, muito por conta das invasões do Império Mongol.

Como na Europa Ocidental se fabricava mais do produto, novas soluções foram sendo desenvolvidas e espalhadas pelo continente. Uma delas, que parece banal hoje em dia, são as janelas — até o século 20, elas mal apareciam em construções asiáticas. Outra aplicação tornada popular pelos venezianos durante o século 16 foi o espelho: considerado item de nobreza, à época usava-se mercúrio para criar a superfície refletiva. Só em 1835 o processo usando camada de prata virou padrão, criado pelo alemão Justus Von Liebig.

E vale citar ainda a produção de lentes. Apesar de as propriedades de ampliação do vidro e cristal terem sido descobertas pelos chineses por volta do século 12, é na Europa que nascem os óculos.

Para MacFarlane e Martin, a maior presença do vidro no continente europeu não tem um único motivo. Dá para dizer que foi algo quase acidental, refletindo variações no clima, eventos políticos, hábitos alimentares etc. Por isso mesmo, não se pode afirmar que a sociedade europeia seria mais desenvolvida do que as de outras regiões do mundo naquela época. O vidro apenas estava no lugar certo, na hora certa: “Melhorias na fabricação de vidro renderam instrumentos mais sofisticados, os quais traziam informações mais precisas sobre o mundo ao redor”, explica MacFarlane em artigo de 2004 para a revista Science.

Reflexos do futuro
Na prática, como esses objetos de vidro influenciaram a vida de então? A prova está numa pesquisa simples feita por MacFarlane e Martin: eles escolheram aleatoriamente 20 experimentos que mudaram o mundo, incluindo a descoberta dos elétrons, por Joseph Thomson; o estudo sobre eletricidade, de Michael Faraday; e o trabalho de Isaac Newton para separar a luz branca em feixes de cores com a ajuda de prismas. Do total, nada menos do que 15 não poderiam ser realizados sem instrumentos envidraçados — sejam microscópios, telescópios, barômetros, termômetros, frascos etc. “O vidro, literalmente, abriu os olhos e as mentes das pessoas para novas possibilidades, fazendo com que a sociedade passasse para um modo visual de interpretar a existência”, analisa MacFarlane.

Vejamos os campos influenciados pelo poder da transparência ao longo dos séculos:

- Ciências em geral
Bacteriologia, biologia molecular e patologia simplesmente não existiriam. Astronomia, biologia geral, engenharia, paleontologia e geologia, entre outras, teriam se desenvolvido de forma muito mais lenta. Sem vidro, como Nicolau Copérnico e Galileu Galilei poderiam demonstrar seus estudos sobre o sistema solar? Jamais entenderíamos como funciona a divisão celular (ou nem saberíamos da existência de células), não seria possível estudar genética nem descobrir o DNA. Até mesmo remédios, como o antibiótico, dependeram de microscópios e outros objetos para serem desenvolvidos.

- Química e física
Pessoas mais velhas, ou mesmo jovens com problemas de visão, não conseguiriam ler sem óculos. A teoria dos gases, primeiro passo para a invenção da máquina a vapor, jamais seria conhecida sem nosso material — isso significa que não teríamos motores de combustão interna, eletricidade, lâmpadas, câmaras ou televisão. Graças também ao estudo do hidrogênio, criou-se o fertilizante artificial, insumo que ajudou a revolucionar a agricultura.

- Arte
A revolução causada pelos artistas do Renascimento (Leonardo da Vinci, Michelangelo, Caravaggio e Rafael Sanzio, entre vários outros) só foi possível com o desenvolvimento de estudos sobre perspectiva, óptica, anatomia, matemática — tudo envolvendo vidro. Isso sem falar nos vitrais de catedrais e igrejas que até hoje encantam o mundo.

- Dia a dia
A rotina das pessoas também mudou. O costume de construir janelas envidraçadas melhorou as condições de higiene dentro das casas, pois agora dava para enxergar a sujeira graças à entrada de luz natural. Até a atividade comercial ganhou força, já que vendedores podiam expor seus produtos em vitrines e armários envidraçados. A maior produção de garrafas de vidro garantiu a distribuição mais eficiente de bebidas e remédios — inclusive, o hábito de beber cerveja e vinho cresceu a partir daí. Relógios de bolso, iluminação pública, estufas, carruagens com cabines… A quantidade de inovações que se tornariam ainda mais evoluídas no futuro (hoje temos celulares em nossos bolsos e somos transportados por carros e aviões, ao invés de cavalos, por exemplo) é enorme.

Conexão total
Como podemos ver, não é exagero afirmar que chegamos ao atual nível de tecnologia e conforto por meio do vidro. “Suas diferentes aplicações são todas conectadas”, comenta Alan MacFarlane. “O rico conjunto de interconexões tornou o material algo fascinante e poderoso, um líquido fundido que moldou nosso mundo”. Por enquanto, nos resta aguardar pelas próximas revoluções transparentes.

Foto: Africa Studio/ stock.adobe.com

Foto: Africa Studio/ stock.adobe.com

 

Este texto foi originalmente publicado na edição 594 (junho de 2022) da revista O Vidroplano. Leia a versão digital da revista.

 

Crédito da imagem de abertura: Stephen/stock.adobe.com



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