Uma tragédia envolvendo vidros mal-especificados, ocorrida em março deste ano na cidade de Caxias do Sul (RS), serve como alerta a todo o setor vidreiro nacional: somos responsáveis pelo bem-estar dos usuários de nosso material. Seguir a conformidade técnica não deve ser uma escolha, mas, sim, obrigação – afinal, não tem como fugir das consequências, até mesmo jurídicas, de se trabalhar fora das normas da ABNT.
O caso
Uma mulher de 45 anos morreu após cair, através do vidro da fachada, do 2º andar de uma academia na cidade gaúcha. A vítima se exercitava em um aparelho instalado a 70 cm de distância da fachada.
Ao cair desse aparelho, ela foi de encontro ao vidro: o material não suportou a carga e quebrou, resultando na queda.
De acordo com reportagem do portal G1, a perícia policial constatou que foi instalado no local um vidro comum de 4 mm que não atende as normas técnicas. Importante reforçar: segundo a ABNT NBR 7199, o vidro correto a ser utilizado em fachadas, em instalações abaixo de 1,10 m em relação ao piso e dividindo ambientes com desnível maior que 1,5 m, é o laminado de segurança, material formado por duas ou mais chapas de vidro fortemente interligadas por interlayers. Caso a peça quebre, o vão preenchido permanece fechado, dando tempo para que o painel seja substituído por outro sem que haja o risco de queda até a troca ser realizada.
No final de junho, todos os responsáveis pelo vidro fora da norma foram indiciados por homicídio culposo (pois não havia a intenção de matar), incluindo o proprietário do estabelecimento; o arquiteto responsável pelo projeto do edifício (e pela instalação do vidro); e três agentes públicos do município envolvidos com a emissão de parecer favorável e licença para construção do local – responsáveis também, após conclusão da obra, pela liberação para ser habitada.
Segurança para todos
O caso ainda será avaliado pela Justiça, com a possibilidade de defesa dos envolvidos, mas episódios trágicos como esse reforçam a importância do cumprimento das normas técnicas.
Quem não cumpre as normas da ABNT assume o risco de causar danos a outras pessoas, podendo ser responsabilizado judicialmente caso algum acidente aconteça. “Conceitualmente, podemos que as normas brasileiras são a indicação de um ‘caminho’ seguro a ser seguido, mostrando-nos o que deve ser feito para que se obtenham resultados satisfatórios. Um ‘caminho’ já percorrido com sucesso por outros e, certamente, mais de uma vez”, reflete o líder do Grupo de Acompanhamento de Normas Técnicas (Gant) da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Lydio Bandeira de Mello. “Portanto, fazer uso de produtos e serviços em conformidade com as normas confere segurança a toda a sociedade – produtores, fornecedores e consumidores. Aqueles que contratam obras, públicas ou privadas, ou, por exemplo, adquirem unidades de edificações residenciais ou comerciais, esperam receber não só qualidade, mas também a certeza de segurança no uso do bem adquirido. O atendimento às normas é, sem dúvida, fator primordial para se atingir esses objetivos.”
Proteção contra obras fora das normas
Conforme comenta Bandeira de Mello, da CBIC, os consumidores na construção civil podem ser divididos em dois níveis:
- Primário: grupo formado pelas construtoras. Devido ao conhecimento técnico que têm, dispõem de meios para se precaver da não conformidade de produtos e serviços, incluindo uso de materiais e componentes certificados. Para isso, podem realizar ensaios para o recebimento dos produtos adquiridos, estabelecer procedimentos de qualificação e avaliar fornecedores. A decisão de fazer uso ou não desses meios é única e exclusivamente dessas empresas, decisão essa que depende do seu nível de conscientização em relação à importância dada às normas.
- Secundário: grupo formado por usuários das obras executadas pelas empresas do grupo primário. Essas pessoas não dispõem, em geral, de qualquer conhecimento técnico e, portanto, têm dificuldade de se proteger da não conformidade. Nesse sentido, contam com uma dependência quase que total do consumidor primário e, em alguns casos, dos contratantes de obras e de agentes financeiros. A Caixa Econômica Federal, por exemplo, desempenha um papel importante para a proteção do consumidor em relação à não conformidade.
Fica clara, então, a relevância de se divulgar a normalização técnica vidreira, para que todos os envolvidos no ecossistema da construção tenham noção de que os documentos oferecem segurança no uso de nosso material. “Aproveito para lançar um desafio ao setor produtivo de vidros para a construção: desenvolver um método que permita verificar, quando do recebimento dos vidros na obra, se eles estão em conformidade com o especificado em projeto. Hoje não há como diferenciar, sem a realização de ensaios, os laminados dos laminados de segurança, por exemplo”, indica Mello.
Como acessar as normas?
A Abravidro se compromete com a normalização de diversas formas – a mais importante delas é como sede do Comitê Brasileiro de Vidros Planos, o ABNT/CB-37, órgão responsável pelo desenvolvimento e atualização de normas técnicas de vidros planos no País. Além disso, a entidade promove ações para disseminar o conhecimento sobre esses documentos, seja em conteúdos veiculados em seu site, aqui na revista O Vidroplano, em palestras e treinamentos ministrados pelo País.
A campanha #TamoJuntoVidraceiro, por exemplo, tem foco importante na conformidade técnica. Criada pela para orientar os processadores sobre as boas práticas que devem ser adotadas com os vidraceiros, a iniciativa defende que o beneficiador, dentre outros pontos:
- Desenvolva produtos conforme as normas vigentes;
- Verifique qual será a aplicação do vidro solicitado ao receber um pedido para garantir que o material a ser aplicado esteja em conformidade com as normas;
- Oriente seus clientes sobre o tipo de vidro correto para cada aplicação;
- Promova conteúdo sobre normas técnicas relacionadas à aplicação do vidro na construção civil.
Como parte da campanha, para facilitar o cumprimento da ABNT NBR 7199, foi criada a tabela Que vidro usar?, com informações didáticas a respeito dos vidros permitidos em cada tipo de instalação – seu texto, inclusive, já foi atualizado com o novo conteúdo dessa norma (conforme se vê na reportagem de capa, clicando aqui).
Associados à Abravidro ainda têm acesso online gratuito, por meio do ABNT Coleção, a mais de cinquenta normas técnicas, incluindo todas as do ABNT/CB-37, além de outras relacionadas ao material. Para as empresas não associadas, há a possibilidade de adquirir os documentos pelo site da ABNT.
“Se quisermos um mercado mais forte, com um uso consciente de nossos materiais, isso passa pelo respeito à normalização por parte dos profissionais vidreiros”, enfatiza o presidente da Abravidro, Rafael Ribeiro. “Não adianta termos normas modernas se não são seguidas à risca. É o nosso negócio e, principalmente, a segurança dos consumidores de nosso material que estão em jogo.”

(foto: Reprodução de reportagem da RBS TV)
O que as leis dizem
O advogado especializado em direito do consumidor Thiago Adorno Albigiante reforça a questão legal das normas: “Existem, sim, leis indicando ao prestador de serviços que deve atuar de acordo com elas”.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu artigo 39, inciso 8, determina:
É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas, colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro).
Segundo Albigiante, o CDC costuma ser aplicado pelos tribunais em julgamentos envolvendo empresas do ramo da construção civil. “Nesse contexto, as normas acabam se revelando especialmente importantes por dois aspectos. O primeiro é a previsibilidade, por estabelecer padrões a serem seguidos na elaboração do projeto ou execução da obra; já o segundo é a prevenção de riscos, pois evitam que o profissional ou a empresa respondam perante a terceiros por alegação de má qualidade na prestação dos serviços.” As normas técnicas, portanto, proporcionam segurança ao usuário final e também protegem os envolvidos (vidraceiros, instaladores, especificadores etc.) de eventuais penalidades.
Se um acidente envolvendo vidro virar inquérito e acabar sendo julgado, o juiz precisa decidir se vai ou não responsabilizar o prestador de serviços – e a primeira coisa a ser analisada é se houve falha no serviço. “É enorme o risco de o juiz entender que houve algum defeito porque não foram observadas as normas técnicas. Se for provado que os serviços foram defeituosos, sendo a causa do acidente, é o prestador quem responde por quaisquer danos relacionados ao caso”, frisa o advogado. Lydio Bandeira de Mello, da CBIC, comenta alguns tipos de responsabilização: “Em acidentes decorrentes da inobservância das normas, há possibilidade de responsabilização civil – com exigência de reparação de danos materiais e morais. Em casos mais graves, poderá haver responsabilização criminal, especialmente quando há lesões corporais ou morte”.
Foto de abertura: Tricky Shark/stock.adobe.com